Conheça o biólogo brasileiro que busca uma cura para o autismo fabricando minicérebros – e, no tempo livre, investiga o pensamento dos neandertais e as origens da nossa personalidade.


Quem quer ser da equipe de Alysson Muotri – que desde 2008 chefia um laboratório com 23 pessoas na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) – pode enviar o currículo pelo site oficial. Mas, atenção: o link “trabalhe conosco” é ilustrado por um recorte de jornal amarelado, com um anúncio de emprego peculiar. “Procuram-se candidatos. Jornada arriscada, salários baixos, frio cortante, longos meses de absoluta escuridão, perigo constante. O retorno a salvo é duvidoso. Honra e reconhecimento em caso de sucesso.”
Quem assina é o inglês Ernest Shackleton, líder de duas expedições à Antártida na primeira década do século 20. Reza a lenda que ele de fato convocou voluntários nos classificados do jornal Times – mas há quem suspeite que essa pequena pérola seja uma fraude, já que não foi encontrada nos arquivos da publicação britânica. Fraude ou não, Muotri não poderia ter escolhido uma piadinha melhor para definir sua filosofia de trabalho. De sua bancada, já saíram minicérebros autistas curados. Minicérebros com Zika vírus. E, num toque de ficção científica, minicérebros neandertais comandando robôs de quatro patas.
Um “minicérebro” é um conjunto de células neuronais criado em laboratório – para que o cientista possa simular (e estudar) as reações de um cérebro real sem ter de abrir a cabeça de alguém. Pesquisa de ponta? Claro. Arriscado? De certa forma. Mas honra e reconhecimento não faltam: trabalhando na vanguarda da genética e da neurociência, Muotri é o biólogo brasileiro que publica o maior número de artigos científicos de impacto atualmente.
Graduado em biologia na Unicamp, Muotri foi à USP em 2000 fazer doutorado orientado por Carlos Menck, um reconhecido geneticista brasileiro. Depois, bateu na porta do Instituto Salk, o mais importante centro de pesquisas biomédicas do mundo, e convenceu Fred Gage, uma lenda viva da neurociência, a adotá-lo para um pós-doutorado. Em 2008, ganhou o cargo de professor e o laboratório na UCSD – onde tem liberdade para fazer qualquer estripulia genética – desde que seja, em suas palavras, “legal o suficiente”. Para entender o trabalho de Muotri – e por que ele é tão importante –, precisamos primeiro entender o habitat natural dos pensamentos: as células.

Cidades invisíveis

O minúsculo mundo das células
Células são pacotinhos microscópicos de consistência oleosa no interior dos quais ocorrem as reações bioquímicas que chamamos de vida. Seres simples, como as bactérias, consistem em uma única célula. Seres complexos, como você, são aglomerados de 37,2 trilhões de células. 37,2 trilhões é o número de segundos que se passaram desde que o Homo erectus, um ancestral remoto do ser humano, saiu da África pela primeira vez e deu origem aos neandertais. O fato de que é necessário esse tanto de células para formar um pedaço de carne de mais ou menos 1,7 m dá uma boa noção do quanto elas são minúsculas.
Células não têm consciência, ambições ou desejos, o que torna especialmente assustador o fato de que cada uma delas sabe exatamente o que fazer para construir e operar seu corpo, desde o dia em que você foi concebido. Todas começam como células-tronco embrionárias, com potencial para exercer qualquer função. Conforme se multiplicam, algumas tiram a sorte grande e se especializam para gerar seu coração. Outras se relegam resilientemente ao papel de vesícula biliar. Elas sabem o que fazer porque cada uma contém, em seu núcleo, uma cópia completa do seu genoma – o manual de instruções que dá o passo a passo para montar um ser humano.
Vejamos o caso das células do fígado. Para se tornarem bons e confiáveis fígados, elas só precisariam dos genes que têm a ver… bem, com o fígado. Mesmo assim, elas carregam os genes para todo o resto. Cada um dos nossos cerca de 30 mil genes é ativado em sequências diferentes para formar tudo, do dedão do pé ao tímpano, em uma ação coordenada muitas vezes mais complexa que a de um maestro marcando a entrada e saída de cada instrumento da orquestra. Com a diferença de que não há maestro. A partitura do corpo, o genoma, se lê sozinha. Muotri, então, é uma espécie de maestro. Que consegue reger (e reverter) esse processo celular à sua maneira. E usá-lo a nosso favor.
Foi assim que, em 2010, ele foi capa da Cell, uma das revistas científicas mais influentes do mundo. Sua pesquisa consistiu no seguinte: primeiro, Muotri extraiu um tipo de célula chamado fibroblasto de uma pessoa com síndrome de Rett, uma forma grave de autismo. Depois, deu marcha a ré no desenvolvimento dessa célula, até ela voltar ao estágio embrionário. Então forçou-a a se tornar um neurônio, uma célula do cérebro. Esse neurônio era “autista”, já que veio de um paciente com síndrome de Rett. E era essa mesmo a ideia, porque o próximo passo seria curar o neurônio.
O processo de transformar uma célula em outra é chamado de “reprogramação celular”, e em 2012 rendeu um Prêmio Nobel a seu inventor, o japonês Shinya Yamanaka. Alysson, inspirado por ele, se tornou um ninja da reprogramação. E foi o primeiro que teve a ideia de usá-la para criar células propositalmente doentes, para então tentar curá-las e descobrir novos remédios no processo. Esse era só o começo. Logo ele descobriu como incentivar a multiplicação desses neurônios feitos sob medida para estudar doenças. E um conjunto de neurônios tem nome: cérebro. Muotri passou a construir minicérebros.

O mini e o cérebro

Em busca de uma cura para o autismo
Um minicérebro é um punhado de neurônios do tamanho de uma ervilha. Sua função é ser uma maquete viva. O dito-cujo não consegue crescer muito, pois não tem vasos sanguíneos para irrigá-lo (sustentar um órgão sem sangue é como abastecer um prédio com água sem instalar encanamento – até dá, mas a eficiência é quase zero). O minicérebro, até onde sabemos, não é grande nem complexo o suficiente para manifestar consciência. E também não se especializa: ao contrário das repartições de um cérebro real, que se dedicam a falar, armazenar memórias ou interpretar estímulos visuais, o minicérebro é uma folha em branco: pode ser o que Muotri quiser, basta estimulá-lo para tal.
Essas miniaturas demoram exatamente nove meses para amadurecer, e como um ser humano, atingem o ápice da atividade elétrica no momento em que deveriam nascer – caso estivessem no útero, dentro de um crânio, é claro. Daí para a frente, a vida é longa: alguns estão com Muotri há três anos. Curar minicérebros doentes é parecido com curar cérebros reais, e por isso eles são modelos úteis para testar uma infinidade de drogas para problemas neurológicos – mais úteis do que ratos de laboratório. Com eles, os testes clínicos ficam mais rápidos e as drogas chegam mais cedo ao mercado: o remédio que curou o neurônio com síndrome de Rett em 2010 já está sendo aprovado para uso em humanos.
Em 2013, Muotri propôs ao governo federal a implantação de um instituto de pesquisas sobre autismo no Brasil. O projeto não saiu do papel com recursos públicos, então ele e seus colegas partiram para a iniciativa privada e fundaram a Tismoo – uma start-up de cunho social com escritórios nos EUA, no Brasil e em Portugal. O objetivo da Tismoo é simples: criar minicérebros de pacientes autistas e usá-los como cobaias para testar tratamentos personalizados.
Em 2013, no governo Dilma, Muotri, em parceira com um grupo de ativistas, propôs ao governo federal a implantação de instituto de pesquisas sobre autismo no Brasil. O projeto não saiu do papel com recursos públicos, então eles partiram para iniciativa privada e fundaram a Tismoo – uma start-up sem fins lucrativos com escritórios dos EUA, no Brasil e em Portugal. O objetivo da Tismoo é simples: criar minicérebros de pacientes autistas e usá-los como cobaias para testar tratamentos personalizados em laboratório. Quando o tratamento ideal é encontrado, ele pode ser aplicado à pessoa de verdade.


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